terça-feira, 27 de outubro de 2009

Velhidades

Refazenda II

ontem fui, sim
hoje, não sei
voltei passado, fim
mal sentido, lei


há tanta palavra
nessa ordem semântica
palavra; qual palavra?
nem se; nem mântica

pode tudo dizer tudo
e querer somente nada
Que nada?
nem ajudo

sentido
Que sentido?
pedido
Que pedido?


entre classificações sintáticas
o desejo da ambiguidade
está na mente aberta
da certeza e da fugacidade

Sinusite
Que sinusite?

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Vazio filosófico

Eva

Ceva
coeva
itapeva
longeva
medieva
napeva
primeva
rubieva
seva
treva
eleva!

O verbo fez-se eva:
releva
alqueva
neva
entreva
Adão sem Eva.

Leva a treva
nem ceva; nem seva
que Eva?

Mulheres, uní-vos!

Para sempre na media

Antes que eles cresçam

Affonso Romano de Sant'Anna

Há um período em que os pais vão ficando órfãos de seus próprios filhos.
É que as crianças crescem independentes de nós, como árvores tagarelas e pássaros estabanados.
Crescem sem pedir licença à vida.
Crescem com uma estridência alegre e, às vezes com alardeada arrogância.
Mas não crescem todos os dias, de igual maneira, crescem de repente.
Um dia sentam-se perto de você no terraço e dizem uma frase com tal maneira que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.
Onde é que andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu?
Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços e o primeiro uniforme do maternal?
A criança está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça...
Ali estão muitos pais ao volante, esperando que eles saiam esfuziantes e cabelos longos, soltos.
Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão nossos filhos com uniforme de sua geração.
Esses são os filhos que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias, e da ditadura das horas.
E eles crescem meio amestrados, observando e aprendendo com nossos acertos e erros.
Principalmente com os erros que esperamos que não se repitam.
Há um período em que os pais vão ficando um pouco órfãos dos filhos.
Não mais os pegaremos nas portas das discotecas e das festas.
Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e do judô.
Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Deveríamos ter ido mais à cama deles ao anoitecer para ouvirmos sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de adesivos, posters, agendas coloridas e discos ensurdecedores.
Não os levamos suficientemente ao Playcenter, ao shopping, não lhes demos suficientes hambúrgueses e refrigerantes, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas que gostaríamos de ter comprado.
Eles cresceram sem que esgotássemos neles todo o nosso afeto.
No princípio iam à casa de praia entre embrulhos, bolachas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhos.
Sim havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de chicletes e cantorias sem fim.
Depois chegou o tempo em que viajar com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma e os primeiros namorados.
Os pais ficaram exilados dos filhos. Tinham a solidão que sempre desejaram, mas, de repente, morriam de saudades daquelas "pestes".
Chega o momento em que só nos resta ficar de longe torcendo e rezando muito para que eles acertem nas escolhas em busca da felicidade.
E que a conquistem do modo mais completo possível.
O jeito é esperar: qualquer hora podem nos dar netos.
O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco.
Por isso os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável carinho.
Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.
Por isso é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que eles cresçam.

Poesia na media

Qualquer


Qualquer
Traço, linha, ponto de fuga
Um buraco de agulha ou de telha
Onde chova.

Qualquer pedra, passo, perna, braço
Parte de um pedaço que se mova.

Qualquer

Qualquer
Fresta, furo, vão de muro
Fenda, boca onde não se caiba.
Qualquer vento, nuvem, flor que se imagine além de onde o céu acaba
Qualquer carne, alcatre, quilo, aquilo sim e por que não?
Qualquer migalha, lasca, naco, grão molécula de pão

Qualquer
Qualquer dobra, nesga, rasgo, risco
Onde a prega, a ruga, o vinco da pele
Apareça

Qualquer
Lapso, abalo, curto-circuito
Qualquer susto que não se mereça
Qualquer curva de qualquer destino que desfaça o curso de qualquer certeza


Composição: Arnaldo Antunes / Hélder Gonçalves / Manuela Azevedo

domingo, 4 de outubro de 2009

Quem somos?

Um boi vê os homens
Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes.
Ah, espantosamente graves, até sinistros.
Coitados, dir-se-ia que não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço.
E ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos –
e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade, e como neles há pouca montanha, e que secura e que reentrâncias e que impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias.
Têm, talvez, certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.
Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Sono de pedra!

No final da corrida, tiraram a linha de chegada. Depois de muito suor para alcançar a tão sonhada autonomia universitária, de repente, acabou. Acabou silenciosamente. Sem ruídos, ecos ou rumores discentes e docentes. Na indecência pragmática de alguns que planejam e determinam a vida de gerações.

O tripé que constitui a universidade - ensino, pesquisa e extensão - nem nas ideias permanece. Uma terrível invasão de interesses alheios à vontade da comunidade acadêmica local faz parte do cenário atual. A realidade aprendida por meio de relatórios e de ofícios é anestesicamente vivida. Igualar os diferentes é não só implicar problemas, mas também agravá-los.

O dia-a-dia transcorre com muito suor, sentimentos, emoções e estórias. História sendo feita num dinamismo ímpar. Cada ramo de uma árvore toma sua rota certa; ou conveniente.

O Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM - é um modelo legítimo de avalição central; porém, está longe de contemplar as idiossincrasias fundamentais de cada um; quiçá de cada instituição que congrega diversas experiências únicas, producentes e pertecentes à cultura maior do seu contexto.

Somos quem sem passado?

Discutir ou propôr outras formas de avaliação e seleção também é louvável e concernente a uma sociedade fundada em direitos e em deveres democráticos. Pensemos todos; mas não deixando que novos ramos sucumbem pela falta de seu tronco.

Somos quem sem passado? Sem a História contruída com a singularidade dinâmica da vivência pessoal?

Acordem, pedras! Acordem!