sábado, 1 de novembro de 2008

Manual do bem-comum

RECÔNDITOS DO MUNDO FEMININO

Baseado na crença de uma natureza feminina,
que dotaria a mulher biologicamente para
desempenhar as funções da esfera da vida privada,
o discurso é bastante conhecido: o lugar da
mulher é o lar, e sua função consiste em casar,
gerar filhos para a pátria e plasmar o caráter dos
cidadãos de amanhã. Dentro dessa ótica, não
existiria realização possível para as mulheres fora
do lar; nem para os homens dentro de casa, já que
a eles pertenceria a rua e o mundo do trabalho.

A imagem da mãe-esposa-dona de casa
como a principal e mais importante função
da mulher correspondia àquilo que era
pregado pela Igreja, ensinado por médicos e
juristas, legitimado pelo Estado e divulgado
pela imprensa. Mais que isso, tal representação
acabou por recobrir o ser mulher – e a sua
relação com as suas obrigações passou a ser
medida e avaliada pelas prescrições do dever
ser.

No manual de economia doméstica O lar
feliz
, destinado às jovens mães e “a todos
quantos amam seu lar”, publicado em 1916,
mesmo ano em que foi aprovado o Código
Civil da República, o autor divulga para um
público amplo o papel a ser desempenhado
por homens e mulheres na sociedade, e
sintetiza, utilizando a idéia do “lar feliz”, a
estilização do espaço ideologicamente
estabelecido como privado.

“Nem a todos é dado o escolher sua morada,
pois em muitos casais a instalação depende
da profissão do chefe”, afirma o compêndio,
em consonância com o Código.

“Entretanto à mulher incumbe sempre fazer
do lar – modestíssimo que seja ele – um templo
em que se cultue a Felicidade; à mulher
compete encaminhar para casa o raio de luz
que dissipa o tédio, assim como os raios de
sol dão cabo dos maus micróbios (...). Quando
há o que prenda a atenção em casa, ninguém
vai procurar fora divertimentos dispendiosos
ou prejudiciais; o pai, ao deixar o trabalho de
cada dia, só tem uma idéia: voltar para casa, a
fim de introduzir ali algum melhoramento ou
de cultivar o jardim. Mas se o lar tem por
administrador uma mulher, mulher dedicada e
com amor à ordem, isso então é a saúde para
todos, é a união dos corações, a felicidade perfeita
no pequeno Estado, cujo ministro da Fazenda é
o pai, cabendo à companheira de sua vida a pasta
política, os negócios do Interior.”

A descrição harmoniosa do “pequeno Estado”
discriminava as funções de cada um,
atribuindo ao marido e à mulher papéis
complementares, mas, em nenhum momento,
igualdade de direitos. Acentuava-se o respeito
mútuo, que pode ser traduzido como a
expressa obediência de cada sexo aos limites
do domínio do outro. Nas palavras de Afrânio
Peixoto, “iguais, mas diferentes. Cada um
como a natureza o fez”.


(MALUF, M. e MOTT, M. Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, N. (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.)

Nenhum comentário: