sábado, 1 de novembro de 2008

Textos que formam; textos que o tempo não apaga

EM DEFESA DA RAZÃO

Estou chegando aos 70 anos. Minha geração assistiu a mais revoluções científicas, tecnológicas e sociais do que todas as gerações anteriores. Com essa experiência de vida, preocupa-me o que estamos deixando para os nossos netos: um mundo onde as pessoas desconfiam dos cientistas e se entregam às crendices. Um mundo de violência, injustiça e desencanto, que abre espaço para a exploração do desespero da população.
Durante décadas, lutei desesperadamente para trazer racionalidade às gerações que me sucederiam, acreditando na ciência e em suas conquistas. A caminhada do homem na Lua, as fotos dos planetas distantes, os computadores, a televisão direta dos satélites, as vacinas que eliminaram da face da Terra a varíola e a poliomielite, os remédios desenhados em computadores que curam o câncer quando detectado a tempo, os transplantes de coração e rins, a biotecnologia gerando plantas mais resistentes e mais produtivas, que liquidaram com a profecia de Malthus, afastando o perigo da fome universal. E, apesar disso, o que colhemos? Uma geração de crédulos sem capacidade crítica.
Até mesmo as pessoas que seguiram carreira técnico-científica não entendem a racionalidade da ciência. Consomem toneladas de pseudomedicamentos sem nenhum efeito positivo para o organismo. Engolem comprimidos de vitaminas que serão eliminadas na urina. Consomem extratos de plantas com substâncias tóxicas e abandonam o tratamento médico. Gastam fortunas com diferentes marcas de xampu que contêm sempre o mesmo detergente, mas anunciam“alimentos” para os cabelos, quando estes recebem nutrientes diretamente do sangue que irriga suas raízes. Há os que untam o rosto com colágeno – geléia de mocotó – e ovos e acham que estão rejuvenescendo.
Fui professor de colégio e de faculdade de medicina. Fiz pesquisas, formei uma dúzia de discípulos que hoje pesquisam, são professores universitários e já criaram meia centena de meus netos intelectuais. Na universidade, desenvolvi um novo modelo de ensino médio.
Revolucionei o ensino das ciências nas escolase improvisei na televisão o primeiro programa de ensino de ciência. Produzimos novos livros substituindo totalmente o conteúdo do ensino.
Por tudo isso, fico pasmado ao ver que, às portas do ano 2000, as pessoas lêem horóscopos sem jamais comparar as previsões da véspera com o que realmente aconteceu. Desconfiam dos cientistas, mas acreditam nas cartomantes,que prevêem o óbvio. Formamos uma geraçãode pseudo-educados, que querem ser enganados nas farmácias, pelos curandeiros que enfiam agulhas em seus pés e manipulam sua coluna, pelos ufologistas, que vêem extraterrestres chegar e sair sem ser detectados pelos radares. Uma geração que se deixa levar por benzedeiras e charlatães com suas poções, por anúncios desonestos na televisão e por pregadores a quem entregam parte do salário. Saem as descobertas e as experiências científicas e entram os duendes, anjos e bruxos.
Mas nem tudo está perdido. Ainda há quem encontre motivação para se guiar pelo racionalismo e pela ciência – e para mudar. E há muito que fazer. É preciso combater o irracionalismo e as mistificações, onde quer que eles se manifestem: na televisão, nos locais de trabalho, nas faculdades. Podemos começar pela educação. Hoje, as pessoas passam um terço da vida nas salas de aula sem aprender e ninguém se importa. Criamos robôs que nos permitem ter uma produção cada vez maior de bens, mas ficamos prisioneiros de uma sociedade cada vez menos justa. Numa sociedade em que a ciência expandiu a longevidade do homem, não oferecemos à maioria da população segurança física nem acesso ao que a medicina moderna pode oferecer – nem mesmo a garantia de teto e comida.
Enfim, criamos um campo propício para aproliferação dos enganadores. Está na hora de quebrar a insensibilidade dos governos e das lideranças para tentar corrigir isso. Não será nos entregando à irracionalidade que sairemos desse buraco e construiremos um futuro melhor para os nossos netos.
(RAW, Isaias. Veja, 09/04/1996.)

Nenhum comentário: